quarta-feira, 10 de maio de 2017

Signos inegáveis do outono começam a aparecer na minha sala. Folhas caídas amareladas, no chão sem eu nunca as ter plantado. Achava que o outono fosse coisa só do outro lado do planeta, mas descobri que a minha sala pode conter o outro lado do planeta, nessa época do ano.
Um parque do futuro quem sabe da sinais no meu sinteco.
Não páro de encontrá-las. Começo a varrer e descubro mais. Como os cabelos que te caem e só percebemos quando varremos a casa. Alguns momentos eu penso se vou ficar careca.
Então, imagino árvores peladas na paisagem.
mas não vejo pelas ruas.
até agora só folhas caídas.
E besouros que fingem ser ventiladores de teto

segunda-feira, 3 de abril de 2017



Às vezes abro os olhos no meio do beijo. É um hábito de menina. E comecei a reparar como ele me beija. É profundo, é intenso. Ele se entrega e nem percebe de olhos fechados.Já juramos num altar, já nos fizemos homem e mulher tantas vezes e mesmo assim, é beijando de olhos fechados que consigo ver, às vezes em microssegundos antes que ele perceba meus olhos. Vejo. É bonito. É uma imagem que só eu posso ver, dos meus olhos. àquela distância ínfima. 
Às vezes abrimos os olhos juntos. E começamos a rir. É engraçado querer surpreender o outro, roubar no jogo do beijo de olhos fechados e ser surpreendido. Aí ficamos com aquela cara de bobos. Parecendo que mal nos conhecemos, envergonhados. Nunca perguntei o que ele acha desses momentos, nem vou.
Talvez, a gente se reconheça, mais uma vez ao final de cada beijo. Muito prazer, encantada. Um namastê particular: cumprimentamos o reino de um que habita dentro do outro.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

catapultas
kronenbier
caralhoaquatro
pirassununga
catiripapo
marrakech
pterodáctilo
saliência
cromossomo

quimera pletora prontamente cratera câncro

cantarolar

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

1992

A piscina de plástico montada no quintal já juntava alguns insetos, folhinhas e vestígios de poeira da rua. Era o momento de trocar a água, ou talvez desmontá-la já que a menina vinha espaçando os banhos de quintal. Ela queria dançar. Dançava o tempo todo pela casa e quando ninguém estava olhando, se sentia à vontade para cantar em voz alta. Tinha vergonha, era tímida, mas sonhava com os palcos. Tinha, na época, 9 anos e gostava de passar a maior parte do tempo na casa com a sua avó que estava sempre ocupada arrumando a casa, lavando o quintal, tirando os cocôs da cachorra. Não tinha mais medo do lobo mau de blusa listrada e suspensório que a ficava no corredor que dava para a rua. Não tinha mais os pintinhos que ganhara na troca do garrafão. Eles haviam morrido dois anos atrás, mas ainda era e ainda é forte o cheiro fedido daquelas criaturas queridas. Tinha conversas lindas e banais com a avó e aprendia muita coisa com o avô. Aprendia muito sobre futebol e sobre as televisões que ele consertava. O avô tinha uma teoria sobre uniformes reservas dos times: era para não confundir com os outros jogadores, sobretudo, quando se via a partida em televisores em preto e branco. Nunca verificou se era verdade. Ainda sente o cheiro de válvulas queimadas que o avô trocava. Ainda é claro o ruído da tv que se demorava a ligar. Aqueles cinco segundos que nos separavam de saber se o serviço estava terminado ou não.
Gostava daquela casa, como poucas coisas em sua pouca vida. As festas na garagem, brincar de comidinha. Mas naquele dia específico, a menina chorava. Chorava muito e parecia encher a piscina de plástico de lágrimas. Tinha acabado de descobrir que não iria dançar na próxima apresentação. Tinha sido cortada. A avó dizia que ela era muito menina e esse era o motivo. Não acreditou muito, mas nunca verificou essa informação também. Na infância, ela se contentava com o que os avós diziam.
A menina chorou a tarde toda, mas em alguns momentos, ela acha que ainda está lá chorando, como se esse momento nunca tivesse acabado. Como se fosse possível, imediatamente, se transportar para essa tarde em novembro de 92. Toda vez que ela vai para lá, ela vê o olhar misericordioso da avó que joga água no quintal com uma mangueira verde. A cachorrinha que olhava curiosa e de lado, quase chorando em solidariedade. Já não explica mais o seu choro, apenas sente as últimas lágrimas que descem e uma vontade imensa de parar de chorar.
Naquele dia, ouviu o barulho conhecido de um carro e a cachorra latiu. A menina sabia e sempre soube que era o som do fusca azul do avô. Correu para a casa para limpar o rosto. Ela não aguentaria a dor do avô ao vê-la sofrer. Lavou os rosto, se olhou outra vez no espelho. Já era o momento de correr até a garagem para recebê-lo. E com um sorriso esforçado ela fez a mesma pergunta que fazia todo fim de tarde quando o avô voltava: "trouxe hoje?". E o avô lhe entregou feliz um saquinho de papel com balas e doces. Era um código, um momento de cumplicidade que os dois partilhavam e performavam todos os dias. A menina, então, sorriu de verdade. E entrou para a casa para ligar a televisão de onde sairam vozes que se demoraram a virar imagens em preto e branco.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Rio seco

Se um rio claro que sofre de seca
pedisse passagem para me atravessar
eu falaria "com licença"
acho que seria um pouco rio um pouco calor
um tanto mulher
ancestral
como todos os acidentes que nos atravessam
como saudades esquecidas
e bilhetes de amor perdidos

quantos rios secos não nos tentam atravessar
todos os dias
quantas cascatas celestes
inventam de subir de nós

Não quero almoçar,
estou sem fome
não é nada não
satisfeita, só isso
engoli um rio
que não existe

sexta-feira, 13 de março de 2015

Na casa nova
Antigos cheiros
São descobertos

O sofá tinha um
Cheiro irresistível
De bicicleta nova

Deu vontade de passear

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A arquitetura dos sonhos

Costumo me interessar pela arquitetura dos lugares com os quais sonho. Normalmente, eu junto duas ou mais casas que conheci, cada qual com pelo menos um cômodo ou um morador e misturo numa arquitetura nova. Algo que já tinha reparado antes é que essa construção onírica é possível através do cinema:filmar lugares distintos e colocá-los em continuidade. Essa noite sonhei com a casa antiga da minha avó, acho que mais precisamente, num período da casa, em que estava em obra para a construção de outra casa em cima. Eu tinha nove anos e o que me lembro bastante são os pelotis de madeira. Tinha um no meio da sala e eu achava aquilo bem divertido. (Certamente, queria subir como se fosse brincadeira de criança, mas nunca desobedeci meus avós). No sonho dessa noite tinham uns pelotis na garagem, mas era para o meu padrinho colocar cerca de 5 carros, com manobras loucas numa garagem em que só cabem no máximo da ocupação, 2. Lembro de estar na rua também, mas não era a rua hoje envelhecida, empobrecida, era aquela rua vívida da minha infância no início dos anos 90, com crianças brincando e vizinhas fofoqueiras. Entrei na casa para contar algo para minha mãe e minha avó e não consegui de jeito nenhum terminar de contar, pois me interrompiam sem cessar. Fui para a sala e já era um misto da sala da minha mãe, com a minha sala, com a outra casa que moramos na minha infância. Tinha uma cozinha que dava para a sala (com tapete, poltrona, mesa, bem cheia) e na cozinha tinha um cachorro. Um poodle preto, que na verdade não era poodle e quando me dei conta, a cachorra era na verdade bem grande. Quis imediatamente levá-la para passear, mas Camila estava lá em casa para conversar. Parecia ser a casa da minha mãe que tinha viajado. Não sei como, fui parar numa varanda com a qual sempre sonho. Tive poucos sonhos recorrentes na minha vida, e esse lugar vive voltando ao longo dos anos. È uma varanda grande, bem grande com um jardim enorme. Já sonhei que era paradisíco, com piscinas, chafarizes que iam caindo em sequência, mas na maior parte do tempo são só plantas mesmo, uma espreguiçadeira, e o balcão de onde posso olhar a rua. Algumas plantas caem do teto que fica em cima da cadeira. A outra parte, fica no sol. Mas nunca é muito sol nos sonhos: ou noite, ou fim de tarde, ou manhã bem cedo. Nunca senti desconforto nesse jardim de sonhos. O mais curioso é que esse jardim é sempre na minha casa. Moro lá, mas toda vez que olho sempre me surpreendo com a beleza e o tamanho do lugar. Algumas vezes sonho que é aqui em Santa Rosa, ou na rua que moro, ou na rua detrás (que não existe). às vezes parece um cenário de filme clássico sobre a antiguidade. Babilônia. Talvez, Egito. Mas às vezes parece um jardim que imagino ao ler romances românticos. Mas sempre sonho com ele na atualidade. O curioso é que sonho com esse lugar e sempre acordo.
Já pensei que se, com muita frequencia, misturo lugares que conheci no passado numa mesma casa, talvez eu conheça essa lugar. E não de imaginar só. De ter tido um jardim assim por onde já passei, vivi, amei em outros tempos.
De alguma forma essas arquiteturas loucas dizem muito sobre mim, minha vontade de juntar pessoas, lembranças, lugares e histórias novas. Esses lugares de sonho que visito à noite, ajudam a desconstruir uma saudade das coisas que vivi. Uma saudade boa de ter, e que se fosse ruim, poderia ser o único pesadelo que teria.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

escreviajar

Deslocamentos se aproximam
da escrita: são a mesma forma
de estar e não estar num lugar.
Sou agora um corpo escrito por
saudades de onde já passei
A viagem acaba
mas continua em mim
Assim como palavras guardadas
num diário de bordo.

As viagens que faço me escrevem

Inverness

People whisper
Children cry
I write and that's fine
The empty bus station
In the way to Liverpool
has no end
Down.
We've watched movies
Talked and fantasized
I wonder how I get to London.
I wonder when
I'll be back home.

An empty pub serves
invisibles stouts and ales.
A young black couple
eat hamburguers.

We acept in silence
the long hours that last
Perhaps, someone is
writing a poem.
The little city remains
Quiet
Offices "to let"
No cars go
Green lights with
No one to go

It seems we're the only people
In the road
Maybe in the world
People here are quite
Locked and safe in their sleep

The neon barber shop
tells me this life
I cannot see is
about to wake up

Are we a dream that
the whole city is having?
Will I be real
when they wake up?

I turn the lights down
And kept a journal
in the backpack
The bus got back to the road.
These tedious lines in the dark
that shake me like
A rocket chair
O pé direito alto
da biblioteca
É para os grandes balões
de pensamento que
saem das pessoas

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

saudade

em alguma ponta atlântica
do outro lado
uma menina
joga para o infinito
recados rabiscados
de saudade

em alguma costa
ao sul
um menino grande
sonha com caravelas
em origamis de guardanapo

Se encontram em algum
poema incompleto
rascunhado
entre dois portos do oceano.







Valsa do Universo

Cada lugar tem o seu ritmo, isso conseguimos perceber e aprender.

É o ritmo do lugar que engravida e dá forma a tudo: arquitetura, comida, calçadas, palmeiras, redes penduradas.

É preciso se demorar um pouco para pegar esse ritmo, nem que seja o suficiente para assoviar.

Quem viaja guarda dentro de si vários ritmos aprendidos.

E, querendo ou não, estamos sempre dançando.
amar alguém é entender seus cheiros fases cores e sorrisos nos olhos

travessias

descobri hoje que as profissões que
já atravessaram o meu querer
(astronauta, bailarina, freira missionária, diplomata)
sem no entanto encontrarem outra margem
são fruto da minha vital vontade
de atravessar o mundo

o amor é atravessar-se do inverso 
no outro que te atravessa
constante

atravessar é nosso hábito mais corriqueiro
porque a travessia é também
o caminhar silencioso de quem pensa
em travessias futuras
é o cantar tímido
do motor do barco


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A Bailarina

entre um passo e outro, da cozinha para a sala, o pé insistia numa altura inadequada, é possível que se diga, num passo de balé. Um rodopio para alcançar a privada, um pulo para se achar a frente da tv. Seu corpo dançava. Começou de um dia para o outro. Mas só acontecia em casa, quando estava só, no meio da tarde de quartas e sextas. Por vezes, se espantava quando um espelho captasse os movimentos. Era como se não dançasse só, mas para alguém que a observava e que também dançava com ela. Nesses momentos, dava um sorriso tímido, e, se o outro a olhasse mais uma vez, ficava na ponta dos pés, levantava sua saia imaginária e agradecia descendo as costas e levantando as mãos para trás. Conseguia até ouvir os aplausos. Era assim que se retirava do palco. Voltava, silenciosamente a lavar as louças.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

quando tinha dez anos, eu lembro que sonhava meio amarelado. Acho que hoje sonho mais pro azul, às vezes tenho sonhos brancos. Sei que sonho em gêneros narrativos. Já sonhei em comédia romântica, já sonhei filme policial, realismo fantástico, musical, em sitcom com gags e tudo, e com frequência sonho em animação, não tanto o traço (mas já sonhei algumas vezes também), mas a lógica narrativa da animação. Essa noite não lembrei dos meus sonhos. Dormi pouco. Pensei no filme que vi ontem que se chama "About Time" sobre um cara que consegue viajar no tempo. Lembrei que cadernos de anotação são a minha maneira de viajar no tempo. Fui atrás de um deles, por curiosidade, e estava tudo lá; o ano passado inteiro em estudos e compromissos. Num outro achei momentos marcantes recentes. Depois, encontrei uma frase sobre a cor dos meus sonhos.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

só tardiamente percebi que o que me embolava a garganta, o que se recusava a sair no lugar onde, se eu fosse homem, haveria um pomo de adão, o que havia estacionado entre a fala, a água, a fome, o ar. Respirava ofegante, engolia com dificuldade. Até o remédio para má digestão desceu de costas pela garganta. Estava eu e minha avó, olhando a paisagem da janela, no corredor do hospital. Havíamos feito algumas vezes esse mesmo passeio na última semana. Ela continuava a me contar os mesmos fatos, apontava para os mesmos prédios, as mesmas árvores, as mesmas ruas do centro de niterói que eu já conhecia. Foi lá que apareceu o bolo. Não na paisagem repetida pela janela. Mas no momento em que me vi ao lado da minha avó, ouvindo as mesmas repetidas histórias. No momento em que me dei conta, que meu medo maior era que as histórias não mais se repetissem. Um temor que tudo, de repente, virasse passado. Antevia um futuro saudoso que me olhava da janela. Horas depois, chorei.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

saudade

já me vejo
em fotografias antigas
tiradas hoje.
As meninas a rir
das roupas que eu usava
nas fotos.
O digital melancólico
num trem pro norte:
você passa e a
paisagem já é
saudade.
É como estar num
filme ao contrário
eu passo
enquanto o filme está parado
a me ver.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Viajar

O melhor de viajar é que as coisas deixam de ser automáticas. Andar, olhar, comer sentir frio, calor, cheiro, tudo é encarado como uma grande novidade. Como ser (um pouco) criança de novo, reaprendemos a fazer as coisas mais simples e tudo parece aventura. Só que com a vantagem de conseguir olhar a criança de longe. Quem sabe até, brincar com ela.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

pessoa

ontem, antes de dormir lembrei da primeira vez que li Fernando Pessoa. Aqui em Triunfo, era uma tarde qualquer, num inverno qualquer nos anos 90 e eu aproveitava a calma da minha cama centenária. Tudo ficou em silêncio, a casa se acalmou, eu não ouvia mais a estrada. Foi como ficar apaixonada: dá um embrulho bom no estômago. Eu saí do quarto, olhei para aquela serra bonita e respirei fundo. E o mundo nunca mais foi o mesmo. Naquela mesma tarde aprendi o prazer de reler poemas. Acho que tudo que faço até hoje está inspirada por releituras daqueles poemas que me reescreveram naquela tarde qualquer de inverno.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

buracos

um menino preto
cava buracos nas suas costas

sem pá de plástico verde
usa as unhas, braços, costelas
lá embaixo escreve poemas
que encontram
a água do mar

você febril
sonha com um labrador nadando em buracos do mar
nas franjas da colcha

conchas

beijo suas costas
palmo a palmo
cheiro morno
mãos dadas
embaixo da coberta

sonhamos

um menino-buraco cava
costas nos nossos pretos

poemas escrevem buracos
de água do mar

"é proibido matar mosquitos na parede"

nossa rota
nossa casa
mania nossa
cavar buracos
nas costas
de sonhos-meninos

terça-feira, 26 de março de 2013

o vô

meu vô sempre foi o cara. ontem cheguei no hospital para visitá-lo e ele tava falando com a enfermeira "esse cara sou eu". Enrolando a língua e fazendo graça. Meu avô parece um galã da época de ouro. Um Marlon Brando, um Tarcísio Meira. Sempre fui sua fã, sempre amei suas histórias e sua forma de ver a vida. No último natal, dei a ele um caderno para que anotasse suas belas palavras. E ele fez isso esse ano. Faz um mês ele foi parar no hospital e teve um diagnóstico que nos assustou. Não sabemos ainda como vai ser, mas temos a certeza de que temos muito amor para dar, muito carinho para ensiná-lo a viver uma nova vida. Hoje ele volta para casa. Em seu último dia de hospital eu e o Taiyo passamos a manhã com ele. Aprendemos muito, foi um belo dia, como os outros dias que passei com o vô. Vô gosta de falar quantos passarinhos estão cantando lá fora, ou quantos tons de verde vemos nas árvores. Ontem, segurando a minha mão, ele fez um poema. O Taiyo anotou e eu transcrevo aqui embaixo. Seja muito bem-vindo de volta, Seu Amaral.

Poema do vô
25/03/2013

Eu já vi muita coisa
Eu conheço todas essas pedras
Eu conheço todos os caminhos
Eu já vi muita gente nascer
Eu já vi muita gente morrer

Muita coisa boa
Muita coisa ruim
Só não vi o homem
Tomar conta da sua cria
Tomar conta da sua cria
O jacaré eu já vi
a onça.
Sempre a cria do homem foi largada
As crianças abandonadas pela rua

O homem não liga muito para sua cria

Vi o sol nascer muitas vezes
Por trás das montanhas

Vi nascer a água por trás das montanhas

Jogando os raios de luz pelo mar

Às vezes eu sozinho, mas sentia prazer
Tem gente que não sente prazer

Eu gosto muito de música
O homem que não gosta de música
Não merece viver
Tem que ter música no sangue

Eu estou com sono

Bonito, o que estou vendo

A minha vontade não é ir pra casa
É ir na rua
ver o sol
ver o céu
ver a natureza

eu quero que a chuva me beije
que caia no meu rosto
porque a chuva tem gosto de mulher

quinta-feira, 7 de março de 2013

Carteira

perdi minha carteira ontem. ela escapuliu da minha bolsa enquanto andava de bicicleta. Descobri na hora de sair de casa, cancelei cartões, mudei os planos, e não pude dirigir. fiquei um dia inteiro pensando que a minha carteira seria encontrada e devolvida. E foi. Entregaram na academia com tudo lá direitinho do jeito que eu deixei. Ao resgatá-la, que me dei conta dos tantos rastros que deixei lá: o que carrego na minha carteira diz muito sobre mim. Carteira de estudante, minha e do meu namorado, canhotos de compras banais, um dólar que ganhei em 86 e guardo até hoje para dar sorte, uma ficha de videokê, igualmente para dar sorte, um band-aid, cartões de visita, 19 reais trocados, 2 cetimos de euro, uma outra moeda que não reconheço, bilhete único e a carteira da academia que me rastreou. Sou séries de números, sou fotos 3 por 4, sou cartões de plastico, sou moedas estranhas, e um curativo amarrotado. Sou também o que não está na carteira: a foto do cachorro que ainda vou ter, a chave do portão imaginário, cartas de baralho, assinaturas que não existem, e óculos para miopia que cabem no porta-moeda. Somos sempre a poesia do entra e do que não entra nas nossas seleções. Somos níquel, números, folhas, fotos, lixo e buracos. E sempre podemos perder e reencontrar o que carregamos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

rascunho

hoje revirando coisas, fui ao passado. tive durante muitos anos o hábito de escrever diários. Eu confessava pro diário, acho que de certa maneira, foi até bom eu ter demorado a fazer análise, porque tenho todas essas inseguranças e loucuras de adolescente por escrito e com datas. É engraçado e estranho. Dá pra entender melhor como você ainda é você e como estou sendo escrita pelas mesmas coisas até hoje. Acho que ano a ano, não faço nada mais que rascunhar o mesmo texto do ano anterior, e de novo, e de novo. Não que é fique melhor, mas eu tento me escrever diferente. é engraçado como pessoas, projetos, passados se embaralham com o tempo. Sonhava muito e sempre anotava os meus sonhos. Rabisquei por cima desse texto, que não sei o tamanho, que não sei como começa e como termina, que se repete. Esse texto que escrevo e rabisco e acrescento e que está em looping é o que me faz ser eu. Esse texto me escreve, anos e anos a fio, o mesmo texto de novo: repetir repetir até ficar diferente.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

férias

hoje, sem mais nem menos, eu parei. não fiz telefonemas, não achei os meus emails no fundo da bolsa e esqueci a chave de casa. parei para tomar um banho de mangueira no quintal da minha infância. enquanto a água caía e eu não pensava em nada, lembrei que eu era a menina das fotos da gaveta do quarto. o calor tinha secado o corpo sem toalha quando voltei dessa lembrança. no rádio um sol de primavera. meu namorado diz que as coisas sempre voltam quando tocamos nelas. lembrei que olhamos o que nos olha. abrimos espaços em nós para poder dançar. 3, 2, 1 lá vou eu. feche os olhos e abra a pele.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Rio Preguiça


numa viagem ao Maranhão
descobri
(porque deslocamentos transformam cabeças)
descobri que quero ser como o Rio Preguiça
que nasce miúdo, filete
mas no seu caminhar
engrandece

porque o Rio Preguiça quer encontrar o mar
e consegue
na calma
com generosa falta de correnteza
vê as dunas
vê o mangue
a floresta
e chega na praia
tímido, manso
e quente.

domingo, 11 de novembro de 2012

Naquele dia
da boca da cama
tentei rever os nossos verdes
quis saber se verdes ainda

eram

verdes são como sonhos
podemos ou não dançar com eles
ter preguiça, nos calar
com eles

descobri feliz alguns verdes ainda
verdes de si
vi também outras cores
pintamos nossas pernas
achei uma pinta nova
no seu peito
juntos
pintamos o lençol

semana passada
ganhamos duas caixas de giz de cera
nunca esqueci que
verde com vermelho
fica marrom

domingo, 21 de outubro de 2012

vi um anjo na rua disfarçado de cachorro vira-lata se coçando. ele me disse, sim, ele disse: deus tem três faces, é preciso reconhecê-las porque são muito parecidas, toda vez que elas falam com a gente: poesia, música e vento. Presta bem atenção, quando falar com ele, porque na verdade, é tudo a mesma cara. E o cachorro saiu de perto, sabe quando cachorro espirra e a gente acha engraçado? ele saiu pulguento para o outro lado, nem com ele mais. nem comigo. foi com deus. ele sente o cheiro de deus cachorros são bons nisso. depois começou a chover bem forte. como no dia que a minha bisa partiu. também foi com deus. também anjo. anjo em forma de vó. tem muitos por aí. eu gosto de chuva, mesmo que eu me lembre da bisa e sinta saudade. ela desenhava ursinhos de mão dada e cortava em volta do desenho. ela contava histórias e dormia vendo televisão. não usava óculos, sua miopia sumiu depois dos 90. tinha 100 anos quando foi com deus. faz 3 anos. até nisso a gente combina. Engraçado, não?

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Liberdade

O que eu tenho que fazer hoje? Tão difícil responder, tantas demandas, tantos trabalhos e ao mesmo tempo, tantos não-fazeres cheios de poesia. Hoje a professora nos obrigou de bom gosto a ler contos. Disse ser mais importante que nossas teorias. A mim, que perco horas vendo desenhos animados não pareceu estranho. Gostei dessa "obrigação" sensata. Porém, e os prazos, os editais, os artigos, os congressos, o Bergson que preciso ler até segunda? Difícil escolher. É o que estudamos nessa aula: a liberdade é coisa muito difícil porque vem cheia de pressões, pressões para se escolher. Muitas vezes procuramos uma saída, como o macaco de Kafka. A saída não é uma escolha, não é liberdade. A saída é outra coisa, como um número musical no meios das nossas próprias narrativas. Manuel de Barros, Pessoa, Apenas um show, Nietzsche. Teoria também pode afetar e ser saída. Tentar ser bicho ou coisa enquanto se escreve poesia. Somos um pouco o macaco de Kafka de revés.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

SP

Cheguei na cidade por cima e percebi que todos os prédios eram carecas
Carecas com desenhos
Tudo cortado por rios e carros
Traços pra cima
Pros lados
No metrô
pinheiros
de escadas rolantes
de gente
Corri com preguiça
A cidade é rápida na rotina
Mas eu estou de passagem
Sim
Passagem
Rios e bicicletas
Torci para que tudo desse certo
Falaria em publico
Falaria de afetos
Num congresso sério
(Dá até vontade de rir)
Ninguém se afetará
Enquanto eu falava
Diferente do maestro que hipnotiza
Vozes
E espalha afetos
A academia analisa

A cidade de predios carecas e
Metro lotado é boa para
Se pensar em afetos.
Num karoke na liberdade
Fui feliz
250 km de engarrafamento
270 km de afetos
Perdidos
Criam-se expectativas
Famílias, hábitos
Cria-se
Barriga

29 anos
E o mundo
Cada dia mais
Parece igual

terça-feira, 2 de outubro de 2012

tempo-sol

o seu relógio me olha
lá da cama
sou medida palmo a palmo
pelo seu tempo
vejo os ponteiros
rodando
a cada letra que escrevo.
tempo
é coisa que não
deixa pegada quando passa
tento correr atrás dele
e me surpreendo quando
vejo suas marcas
no rosto,
corpo,
cabelos,
amigos

tempo é poeira que
corre pra baixo
na ampuleta
ou pra cima na estrada de chão
corro com o tempo
para um dia
me dar ao luxo de
assisti-lo da rede
brincando com os
cachorros

coloco o seu relógio
esquecido
e visto o seu tempo

de uma hora pra outra
passei a fazer coisas minhas
no seu ritmo
ando com as suas pernas longas
com a sua fome-abismo
com o coração
batendo como o seu
sincronizado
na mesma disritmia:
compassos de salsa
com um surdo no segundo tempo
ou um gol num segundo
do segundo tempo

com o seu tempo
escrevo as mesmas suas
longas linhas
por dentro das minhas
longas saias,
cubro o corpo
e me exponho em palavras
ando com o tempo
de mãos dadas
como quem caminha para
o cinema,
distraída, vejo o tempo
atravessando a rua
com outra
como se nada
bicicletas fazem vento
o bento me ensina
a fazer frases com poucas
palavras
pulo do alto do prédio
do tempo
sorteio na cartela de
não-fazeres
quais e quantos e ondes
e sigo
as brechas se abrem
sorrisos vão e vêm
o tempo-menino
mergulha na poça
com sapatos novos
e nós
sem perder tempo
fazemos o mesmo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

se os poemas não me têm
no momento
é porque não posso me
entregar a eles
algum resguardo
algum cuidado
de tê-los somente
quando for intenso
e recíproco

me reservo a só
vê-los
quando pudermos
nos encontrar
despidos

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

cascatas de borrões
onde os sonhos
pegam sol

sapateamos pólen
enquanto o cheiro
de tinta nos move:

minha floresta tropical
pinta poemas na sua pele

toute petite figure

(sobre "toute petite figure" de Giacometti)
les yeux
son visage
la tête
tout
c'est petit
miniscule
mais cette
petite figure
m'est revillée
je suis entre elle
le museum est
chez elle
tout les hommes
toutes les femmes
sont entre elle
cette petite figure
est le monde
ou tout qu'on
puisse connaître.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

o Bento aprendeu a dançar.
Sozinho.
E gosta.

Se diverte com seu
próprio movimento de
rodar em volta de si
fico boba
me espelho na sua dança
sei que estou ali
sei que danço com ele
somos parecidos
mesmo sangue
mesma vontade
de recriar o mundo
com esses passos estranhos
ele sorri pra mim
como quem chama pra dançar

dança de criança
não segue o fluxo do ritmo
da música ou do canto
é um jeito de mexer
que faz poesia

não me disseram isso
mas garanto
por invencionice:
toda vez que uma criança
aprende a dançar
nasce uma estrela no céu

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sacerdócio

desenhei maria
e pensei em poemas concebidos
sem pecado
Santo Agostinho
El Greco
Antonio Vieira
o menino jesus de Caeiro
comunguei com eles
desenhei a freira
que queria ser

mais nova eu achava
que eram precisos terços
e hábitos para se chegar
até deus
eu queria
encontrar deus
quem sabe um dia
ir em missão
a algum lugar miserável
me doar inteira
e voltar a ver o clarão
que um dia em sonho
entrou pela minha janela

a freira que eu nunca
fui
pensa na mãe
somos todos órfãos
ligando os pontos
de um desenho de jornal
tantas marias no museu
tantos barrocos como eu
a freira que sempre fui
deixa os poemas
me escreverem
e as pinturas
me olharem
me doou
inteiramente
a imagens e palavras
e assim
na menina que sou,
encontro a freira
que posso
ser

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Genealogias

marionetes
engolem celulares
com corações dentro
com o mundo inteiro
daquele tamanho todo.
Dentro.
Na materialidade de um objeto
temos um mundo

Um copo que me bebe
Um traço que me risca
São os poemas que escrevem
as pessoas
o sexo que faz os amantes
o tempo não toma
não é tomado
apenas flui,
tempo.
Objetos são rastros, efeitos
excessos boiando em fluxos:
os efeitos são a única origem conhecida.

É preciso começar pelo fim.

(o poema pode também ser lido de baixo pra cima)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

vi um poder
atravessando a rua
esperou o sinal abrir
olhou para o chão
e então atravessou
distraído atentamente
em nada específico

sabia disso?
poderes se distraem
perdidos em calçadas

terça-feira, 21 de agosto de 2012

la mayor sonrisa

cuándo la luna se queda llena
mi cuerpo a mí recuerda
las cuervas de una vieja
canción
los cantantes son
mis brazos, piernas
y los instrumentos
mi corazón
en este momento
puedo a ti sonreír
o danzar mis sueños
muertos
pero prefiero que te
descubras sólo
todo lo que guardo
mientras los cantantes
y los instrumentos

sábado, 18 de agosto de 2012

desenho


na aula
era pra desenhar
3 círculos
3 linhas retas
3 linhas curvas

Foi quando percebi
que sei desenhar
só de escrever

círculo pra mim é "o"
reta é "l"
e curva é "s"
aí desenhei com letras um "SOL"

fiquei a brincar
com palavras
e fugi da aula
papel canson
lápis 6B
bonzão
pra desenhar poesia

terça-feira, 7 de agosto de 2012

passados

encontrei um passado na gaveta
lá dentro uma caixa
algumas sacolas
e caligrafias esquecidas

passado é coisa que se coloca
em pasta,
ou se expõe pra não esquecer

não se carrega um passado
o passado se guarda
às vezes até sem querer
igual poeira que está lá
e ninguém colocou

O aqui ainda
vive em nós
como o instante
eternamente se renovando
não é presente
simplesmente
é
aquela criança que corre
entra e não entra no
rio que somos
e não somos

acomodei passados
em pastas, caixas e gavetas
e assim estão.

porque memória é
antes de tudo
esquecimento.

sobre The Universe of Things

Imaginei um mundo de coisas vivas
Não era animação ou poesia
Era só imagem: eu tocava
Um mundo de coisas vivas

Lambida de cachorro
Coceira estranha na sola do pé
Pernilongo-sangue na parede
Queria mais:
A escandalosa experiência
dum mundo em que tudo que se
toca é vida.


(Fui cozinhar e escrever, então)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

metades

Queria, na verdade,
dividir minhas metades
e espalhá-las pelo mundo,
uma metade aqui,
outra em triunfo,
outra partiria
pra Europa com a minha tia
amanhã,
outra brincando de esconde-esconde
com o meu irmão,
meia metade com 4 anos
na casa da vó,
outra meia eternamente
pegando sol.
Em outra metade,
eu me apaixono com 16 anos.
Outras duas metades
estão com você.

Um dia, todas essas metades
se encontrariam.
Eu me olharia no espelho.
A imagem que vejo
é só mais uma metade perdida.
Abismo de metades.
Somos sempre muitas
dentro ainda e de novo.
Ser e estar,
metade calabresa,
metade chocolate
com maracujá.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

hoje tive medo

hoje tive medo

acho que ninguém viu
disfarço bem
fiz piada com medo
paguei uma multa,
pedi bastante creme no café
ninguém percebeu,
mas eu estava com medo

medo de criança é diferente
eu corria na antiga
casa da vovó
de olhos fechados
(só de olhos fechados o monstro
que morava atrás de mim não
conseguia me alcançar)
o coração batia alto
mas o medo não era mais rápido que eu
e parecia uma ilustração
de livro numa infância qualquer

hoje tive medo de adulto

não é bonito de lembrar
nem cabe aqui dentro
a gente ainda quer correr
e tapar os olhos
mas medo de adulto
corre na nossa frente

tapei os ouvidos
e pedalei no meu medo

o coração de criança
que ainda bate alto
disse que era apenas
um corredor longo sem janelas
logo logo
logo logo
chego na sala

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Lua vazia

me explicaram que a lua vazia
é uma preguiça contagiante
do universo: tudo, até a gente
fica num ritmo lento
dançando em compassos de 8.

é uma explicação bonita
para a dedicação
exclusiva a coisas inúteis,
e sem escolha
(porque eu quero
dançar com o universo)
jogo todos os
compromissos sérios
para o modo subjuntivo

no aqui ainda
apenas
você cinema e poesia
as três metades
do mais ou menos
nada cheio de tanto
onde quero morar

domingo, 17 de junho de 2012

leão mineiro

Quando fui a Minas, das muitas coisas que me impressionaram foi o leão que o Aleijadinho fez. Ele nunca tinha visto um leão na vida, nem desenho, só descrições. Os seus leões eram bichos mitológicos e eu achei lindo como a imaginação ultrapassa essa necessidade de semelhança. O leão mineiro é o leão mais verdadeiro que eu já vi. Assim, a felicidade quando eu ouvi falar, desenhei ela dentro de mim. E numa sexta-feira que nunca mais acabou, o leão mineiro chegou.

sábado, 9 de junho de 2012

salgadinho

la grasa del mundo
que quiero limpiar
és solamente aquella
que se quéda en las manos
cuando se come con ellas
esta sí, la quiero
con mi boca
y mis sonrisas
de felicidad

quinta-feira, 7 de junho de 2012

escrever, na verdade
é um processo de copiar versos
os versos já estão prontos
dentro da gente
nascemos só para copiar de volta
esses versos mais antigos que a vida
que nos dão sentido
e nos desejam
(sim, vivemos porque os versos
nos desejam!!)

outro dia descobri
um poema que me desejava

ele me olhava enquanto
dormíamos,
falava baixinho
meu nome à noite,
eu não escutava
ou fingia que não

gosto de sorrir para ele
porque sei que ele está lá
faço pose e canto coisas
as vezes saio na ponta do pé
para ver se o encontro

um dia encaro-o de frente
copio verso por verso
e espalho o poema em mim,
ele vai me olhar de perfil
eu, com a ponta dos dedos,
da forma mais delicada possível
tocarei o seu rosto, pescoço, peito
os olhos do poema estarão abertos
nos meus
e nós, em silêncio,
tomaremos posse,
um do outro.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

chuva na montanha

meu desejo
de midas
é sonhar
com um dia
em que tudo
que eu toque
vire poesia

quinta-feira, 31 de maio de 2012

penso as vezes
num bom lugar
pra se morar
rede, céu, tapete
um lugar para encostar
o pé no chão

pode ser um bom filme
ou uma memória
tem gente que mora bem
num fusca 68
que nunca existiu.

moro todo dia
em heterolugares
(meu superpoder favorito
sempre foi o teletransporte)

moro num texto que leio
ou num desenho que me olha,
eles me desejam
tanto quanto eu a eles

moro todo dia
em heterotopias

utopia não é sonho nem mistério
nem uma coisa só
é apenas um lugar que te aponta
no mundo
e você só aponta de volta,
caracol e concha,
cafuné e colo

a grama que acabou de ser cortada
sente o meu cheiro de cama

terça-feira, 29 de maio de 2012

O calor tomou o meu corpo
e ardi em febre
40 graus por 3 dias
No Rio, 40 graus
chega a ser clichê
estamos acostumados aos calores
Coletivos
melhor mesmo
são os calores em par
Como afinidades que vêm
em pacotes, você disse
no dia em que nos encontramos
Foi o dia em que
não aprendemos o que era um
Estromatólito
(penso que essa palavra ficaria melhor
com um E na segunda sílaba, teria o som
de pedra extrema, lindo, como o nosso arpoador,
como o bojador em Pessoa)
foi nesse dia também que você
me carregou na minha bicicleta:
eu tentava não encostar
demais a cabeça no seu ombro
e percebia o quanto você
evitava beijar a minha testa.
acho bonito uma bicicleta para dois
daquelas coisas incríveis que
que só encontra seu significado
muito tempo depois: bicicletas foram
criadas para um dia se carregar moças
e nada mais.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

muito se perde
entre ensaiar
filmar e editar
poesias

escrevia de cabeça
quando apareceu
uma frase incrível

o poema estava garantido
com uma puta frase no final

Só que a minha memória
perdeu o seu verso

deve ter sido a cerveja do almoço
ou o sol do arpoador
no meio do dia
talvez, a terapia
que bagunça as minhas frases
e depois eu jogo tudo num armário
onde nunca mais consigo achar

tentei re-sentir o verso
fiz exatamente os mesmos passos
mas ele estava perdido
de nada adiantava procurar
no meu caderno

pela vitrine eu via
as pessoas andando
passando
pisando no meu verso
perdido na calçada

domingo, 20 de maio de 2012

Sonho com cores

Era um mesmo quadro fixo, onde nada acontecia, composto por objetos, todos na mesma cor. Mas, de uma hora pra outra, tudo mudava de cor, o mesmo quadro, em outras cores: laranja, vermelho, amarelo, verde-limão, roxo. Cores fortes, tipo anos 70. Depois, eu cozinhava e servia as minhas carências pra você. Também tinha carne assada com batatas no prato de porcelana em cima da toalha branca (adoro toalhas brancas). Sequei a mão no avental, estávamos na nossa cozinha branca dos anos 70. Olhávamos um para o outro por longos minutos. Tudo acontecia num grande silêncio eu não sustentei o olhar. É que entre um olhar e outro, na dúvida entre olhar para os olhos ou olhar para boca, senti você chupando as minhas verdades. Olhei para a janela. Branca como todo o resto. Olhei de volta e você não estava mais lá. A cadeira branca estava vazia e o prato vazio na mesa. Segui por um corredor-labirinto cor cobre da nossa casa nos anos 70. O meu reflexo brilhava fosco nas paredes metálicas. Um reflexo borrado que eu não conseguia não acompanhar; será que é ele que me segue ou sou eu que ando atrás dele?

sexta-feira, 18 de maio de 2012

o radio tocava bons clichês

tinha um véu tapando a luz
e guardando as folhas
enquanto na mesa
lembrando os cadernos perdidos
estamos e não estamos.

os verdes vivos de plástico
os verdes pálidos de plantas
o verde-ardósia do chão,
amanda nunca disse não.

verdes, as paredes me diziam que
ainda estou para
pegar a estrada pra minas
e os nossos assuntos
verdes-capim-limão,
aos poucos se amorenaram
com duas colheres de mascavo

naquele restaurante
somos e não somos
entramos e não entramos

quinta-feira, 17 de maio de 2012

quando o passo do relógio
e o do corpo se encontram,
quando olhar a natureza
dá vontade de dançar
e encontramos largada
uma fresta do sol de maio
a única palavra possível
é a escrita
(palavra é um desenho
com letra que faz som
na cabeça)

FIM

quarta-feira, 16 de maio de 2012

silence

il fallait froid
l'année dernière
au mois de mai
comme aujourd'hui
ta presence distance
a chauffé mes jours
le vent, la pluie,
la fenêtre overt
et j'avais oublié
mes autres senses:
je voudrais voir tes mots,
seulement

les mots sont les plus
chaudes choses
que je connais
(c'est pour ça
qu'il fait froid
maintenant)

domingo, 13 de maio de 2012

o disco rodou rodou
(é como relaxar o pescoço
pro lado direito)
e eu fiquei olhando o som

a música encontrou meu corpo
deixado na sala
rasgou um pouco na hora de entrar
cicatriz em pele morena
fecha, mas deixa marca
algumas fazem desenhos bonitos
tatuagem que se ganha
afinal,
o excesso nunca deixa
a sala impunemente

terça-feira, 8 de maio de 2012

geladeira

Silêncio

Não temos paredes
na casa
e podemos nos ouvir.
fale baixo
enquanto arrumo os restos,
o gostar prismático
se espalha com a luz do sol
então, feche as cortinas
e tire a poeira.
Na hora de sair
tranque a porta com cuidado e rápido
pois os gatos podem
sair no seu rastro.
não se esqueça:
tem mousse de maracujá
na geladeira, coma
antes de virar o lado
do disco.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

coração não se dá
num anel dourado
nem numa fita cor de rosa.
coração é lugar de batalha
se perde, se rouba, se destrói
se conquista.
em tempos de paz
coração é mato solto
comprido, verde, pronto.
Livre,
mas com aquela beligerante
sensação
de ouvir de longe
passos invasores
que se aproximam.

domingo, 6 de maio de 2012

Sonhei que tocava uma música do Milton que eu não conhecia e isso me paralisava: eu tinha que saber que música era. Daí, eu me perdia procurando e nunca mais voltava do sonho. Acordei pensando que eu bem queria fazer um travesseiro dos seus braços. Ouvi Geraes, então, me perdi de novo, e nunca mais voltei.

terça-feira, 1 de maio de 2012

olhei os balões no céu
se afastando, virando ponto
e sumindo pra um lugar invisível.
balão é coisa bonita de se ver
parece brincadeira de criança
com fogo que faz voar.
o meu balão é rosa, de menina
o seu é azul, de guri.
hoje somos pontos, azul e rosa,
em camadas diferentes de ventos.
quem olha de longe um ponto azul
e outro rosa, distantes, sozinhos
só acha bonito, como passarinho no céu
ou avião que faz acrobacia.
O sol também desce no céu
como balão pousando,
e some dos nossos olhos.
Só quem sabe dos seus segredos
é aquela estrela que acabou de surgir
entre um ponto azul e outro rosa
num céu gigante.
ela também sabe da gente
e jura que não conta pra ninguém.
Nem pra quem só olha da terra
enquanto o céu acontece.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Anacronismo Crônico

Nasci na época errada.

Deve ser essa preguiça imensa
que atrasou a minha vinda.
Cheguei num bonito dia de inverno
dum ano tarde demais.

Um dia o médico me examinou,
percebeu que o coração batia diferente
e diagnosticou: é um
prolapxo da válvula mitral.
um nome bonito pra dizer
que o coração batia em descompasso:
PRO-LA-PXO.
São duas batidas e um suspiro
nunca no mesmo ritmo,
como falar essa palavra
cada hora de um jeito.

O coração fora da sua época
bate nostálgico
procurando seu próprio som
às vezes encontra rima
em outras acha o tema,
entre tentativa e erro
amassa e desamassa
sem nunca achar o tom.

domingo, 22 de abril de 2012

clichês

eu queria um diário bonito, com um coração e um cadeado. Contaria meus segredos de menina, desenharia nomes, passaria um bom tempo olhando para o teto e construindo abismos acima da cabeça. Eu queria um mustang vermelho 87, jeans, óculos escuros, uma estrada longa, uma rádio tocando rock ruim da década de 70. E um batom vermelho, argolas, um tomara que caia rodado, um coque e a carteira embaixo do braço, olhos bem pintados. Colo todas essas imagens nas minhas paredes vazias. Há espaço. Olho bem devagar os clichês da minha alma. Recorto mais um: por-do-sol, goiabeira, pé descalço, cavalo no portão e um violão tocando toada. Banho de rio: recorta e cola. Banho de mar: recorta e cola. Bicicletas no aterro. Dormideiras fechando. Beijo de esquimó.

sábado, 21 de abril de 2012

Não se esqueça:
um quarto vazio
está cheio de ar

domingo, 15 de abril de 2012

Rosebud

Quero lançar um filme nos anos 40 sobre a minha vida. Dolores del Rio será eu. Uma história nostálgica que se passa no Rio atual: frescobol e biquini tomara que caia, mesas de bar, bicicletas, funk, soul, samba e forró num musical inédito. Começa com um número de sapateado na lapa, sem instrumentos, sem canto, só vestido vermelho e sandália prata. Nada de poças d'água, a chuva é fina, é outono. Sonho acordado. Eu aperto os meus olhos fechados e relaxo. Volto a escrever o texto e tomar o chá de capim-limão. Olho a janela e chove fino, é outono. E rabisco um nome no papel.
Um coração se cura
como queijo minas,
deixe ele lá, descansando,
ele vai perder o soro, a água
e com o tempo
ta curado.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A paixão existe em planos detalhes. Metonímica. Como as melhores cenas de um filme que vão parar no youtube para serem vistas indefinidamente, cheias de links relacionados num looping infinito. Os sentidos são sentidos como nunca e a mente monta as melhores sequências, tanto de memórias vividas quanto imaginadas. Essas cenas prontas repetem na cabeça, geram prazer, se retroalimentam em seu próprio repertório, para mais uma vez repetir e encontrar prazer. A felicidade é o desejo de repetição, eu li quando era adolescente e entendi sem nunca ter me apaixonado. Se recuperar da paixão é obrigar o olhar, o ouvido, a pele a voltar ao plano geral, aos tempos mortos, e tentar criar um distanciamento com a nossa própria narrativa. Mais ainda, interromper o desejo de repetição, ou, na melhor das hipóteses, reconfigurá-lo. E por isso é tão difícil: o close é um desejo permanente dos nossos sentidos. Dizer não para esse apelo é quase negar a nossa própria existência.

domingo, 1 de abril de 2012

sonoridades


Em 20 tecnologias diferentes
nada acontece.
Nenhuma delas.
NADA.
Nem um bilhetinho idiota
deixado por engano.

Miramos máquinas
como quem espera algum
milagre sonoro:
dinheiro eu não sei, mas
barulhinhos eletrônicos
trazem felicidades.

Na verdade,
barulho e felicidade
sempre tiveram afinidade,
buzina, carteiro,
assovio, campainha.
O portão barulhento se abre
não mais que o sorriso
da moça sentada no sofá.

Sem percebermos, sonoridades
são viradas presentes
na história da gente.
Deus ex machina
restabelecendo a ordem
é você verdinho
piscando no gtalk.

quinta-feira, 29 de março de 2012

madrugada

(cantando para não esquecer a melodia)
Madrugada
Deita e rola
Madrugada
Não tem hora

Pesando sem balança
A madrugada dança
Apaga a lembrança
É hora de mudança

Madrugada
não demora
madrugada
Também chora

Não teima, criança
Que qualquer semelhança
Com aquela fala mansa
É mera abundância

Madrugada
Me ignora
Madrugada
Foi-se embora

domingo, 25 de março de 2012

chupeta

Um dia minha mãe falou:
"encontrei uma barata na sua chupeta"
era mentira, mas só a adolescência me mostrou isso
e naquele triste dia de criança
eu tive que jogar a minha chupeta no lixo.

Com a chupeta na mão fechada
e a lata de lixo embaixo
eu chorava com medo de
abrir a mão.

Até hoje, por vezes, me sinto assim:
choro, chupeta, barata,
mão fechada e a lata de lixo.

Esse estranho momento na memória
onde eu negava o inevitável
me ensinou que quanto mais tempo
com a mão fechada
mais longo o choro.

sexta-feira, 23 de março de 2012

como máquina
tendo por vezes
a dar defeitos

defeitos de fábrica
ou pelo uso constante

sem garantia alguma
a vida gasta as peças,
correia, corda, vela,
dessa engrenagem
aberta
que chamam coração

domingo, 18 de março de 2012

domingo

tem dias que algo falta
um cheiro, uma voz
uma força qualquer
dá vontade de olhar pro lado
como criança que inventa amigo.

mas não ta lá também

fico quieta reparando no mundo:
carros, cores, pratos
e as telas luminosas
(a pipoca é comida com cuidado
no escuro)

a vista chinesa recorta a zona sul
aquele vestido preto
tem um antigo corte da moda
corta para cena 1 plano 5:
ela, no computador, lembra
que não pode pensar nele,
e escreve:
"até as coisas realmente bonitas acabam"
e vai dormir.

às vezes, é preciso ver o domingo de longe

sábado, 3 de março de 2012

ossos

de todas as partes do corpo
eu acho que a ausência
se sente nos ossos

ossos mantém de pé o que é vivo em nós
são o que sobrevive à morte.
a ausência é exatamente isso
sustentar em pé o que ainda vive

uma vez, num romance cubano,
li que o português
era a língua sem ossos.
nunca entendi direito.
mas hoje acho que falar português
é a vida pura que se carrega sem forma e sozinha.
é o avesso da ausência
é o remédio mais eficaz
talvez o único
que conheço
contra a solidão da saudade

o silêncio
ecoa nos ossos

domingo, 5 de fevereiro de 2012

observar a vida menos bruta
maravilhar-se, uma vez por semana
que seja
tem um sabor de missão cumprida
como a pelada da quarta à noite
ou telefonemas a amigos distantes

mas talvez seja mais

perceber uma beleza qualquer
é, volta e meia,
encontrar um espelho
onde sempre estamos bem

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

quero pra sempre
ser menina
dançar com lençóis
abraçar travesseiros
ainda é brincadeira
arrumar a cama.
Mas cresci
e vez por outra
me pego
adolescendo sem motivo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Solitude

De repente, Ivan se viu sozinho, em silêncio no escuro. Não estava triste nem com medo, apenas quieto. O silêncio fica mais à vontade na escuridão. Ivan, ao contrário do que normalmente fazia, resolveu continuar inerte para esticar aquele momento mais um pouco, ver até onde iria aquilo. E ficou. Quieto, pensando. Deve ter ficado assim até dormir e no dia seguinte, com o sol entrando pela janela, Ivan acordou outro. Era o mesmo Ivan de sempre, mas agora tinha um certo prazer indolente em estar só. Não contou a ninguém, não mudou a sua rotina, mas sempre que se encontrava sozinho, em silêncio no escuro, partilhava consigo mesmo aquele conforto inconfessável.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Sou o som do sabiá.
Soube sibilar
um símbolo santo
secreto
que se sente só

sou senhor sem
sonhos
sou ciente do
seu senso de solidão:
sempre sei se sou
saudado ou não

sou simples
saio sem sentir
assobio sábio
suor, sono, surto
sigo cego:
passáro, sol, silêncio.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

ando com uma mania nova:
à noite, antes de dormir,
repasso todo o meu dia
como se você estivesse comigo
conversas no bar, mergulhos
festas, compras no mercado.
E o dia que poderia ter sido
é tão lindo
que vou dormir feliz.

domingo, 19 de junho de 2011

paixão se cria
como um traço
uma fumaça no ar
um poema mal-feito

criei uma paixão um dia
era gorda, grande e feia
mas eu a amava!

ela fugia de mim
e eu a inventava diferente
rala, chocha, murcha
até que um dia
alguém inventou
uma paixão-relâmpago
que fulminou tudo ao redor
e eu só vejo o clarão

quinta-feira, 9 de junho de 2011

asa nisi masa

Eu, Ele, Eu, Eu-Ele,
em corte seco,
enquanto invento uma memória:
o cheiro do quarto
do copo de café
do tapete lavado,
também estou lá.
Dois espelhos se miram
e me vejo espalhada
em telas:
olho para Ele
e infinitamente
me repito
em abismo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

ser ou estar

Em português temos a possibilidade de falar ser ou estar, em verbos diferentes, como coisas diferentes e eu sempre gostei disso. Parar o instante com um verbo nas outras línguas é impossível. Me lembra o portal de Zaratustra, que é das coisas mais linda que conheço e reproduzo aqui:
"Este longo corredor para trás: ele dura uma eternidade. E aquele outro corredor adiante é uma outra eternidade. Eles se contradizem, esses caminhos; eles se chocam frontalmente: e aqui nesse portal é onde eles se juntam. O nome do portal está escrito ali em cima: INSTANTE.

É como passar pelo portal a cada momento, portais e portais consecutivos: estou feliz, estou romântico, estou com fome, estou cansado, estou calma. Em outras línguas existe a não menos bela ambiguidade de que tudo que é não necessariamente será. Nós que passamos no portal, às vezes empurramos as coisas para o próximo portal, para o estatuto do estar, porque se as coisas são em português, elas são; sérias e definitivas.

Eu estou com saudade de escrever poesia.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Deixe os seus
aforismos
brincarem
lá fora
na rua
com outros
aforismos soltos.

Assim, eles crescem
saudáveis

sexta-feira, 20 de maio de 2011

ESTRANHO

Ser estranho não é uma condição, mas um estado, uma passagem, como uma rua escura em que você corre para passar rápido por ela. Afinal, o estranho é lento. Ele ainda está se adaptando e isso toma tempo. O estranho passa e volta. Você sobe no carrossel da estranheza e depois de um tempo ele para de rodar. Mas o estranho não é o outro, e sim, nós.

De estranho para estranho, nos cumprimentamos como iguais.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Dia molhado
me encho
de folhas
por todos
os lados

sábado, 14 de maio de 2011

πάντα ῥεῖ


Acordei com o seguinte pensamento:sístole e diástole, sístole e diástole. A princípio, esse pensamento me transtornou: por que será que se acorda pensando uma coisa dessas?
Por trazer, ao abrir dos olhos, elementos tão naturais esse pensar me parecia a mais estranha das ideias. Não satisfeito, o pensamento não foi embora e naquele instante-eternidade entre acordar e levantar continuei a pensar como se só existisse isso no mundo: sístole, diástole. Repeti para a minha cabeça e aos poucos eu dizia para o meu corpo a ordem do dia. E assim foi que eu comecei a acalmar, pensei que tudo flui, o sangue, o sono, as vontades, as manhãs. "Tudo é um fogo acendendo e apagando em medidas", sístole e diástole, sístole e diástole. Levantei calma e o meu dia fluiu tranquilo.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Aos nossos discos


Há algum tempo eu tento juntar os vinis espalhados pelas casas da família, pois, como é sabido, eu curto uma nostalgia, já na adolescência, eu escrevia diário para poder ler sobre o dia anterior com saudade. Quanto aos discos, o problema era o seguinte: minha avó querida estava com a vitrola e eu nunca conseguiria tirar qualquer coisa dela e os discos do meu pai, que eram a maioria, estavam em alguma casa dele que eu não sabia qual era. A vó Dorinha depois de um tempo acabou me devolvendo a vitrola, os discos do meu pai eu consegui pegar numa faxina logo após a obra na casa e por fim, ganhei um amplificador novo do meu padrinho para poder aproveitar o som. Enfim, ontem, dia das mães, juntei tudo para um final feliz. Bom, final? Na verdade, dei uma paradinha agora, mas estou no meio de uma grande bagunça e vários discos para guardar.
É que aquele aparelho que eu ganhei no meu aniversário de 10 anos para ouvir meus discos agora parece um imenso trambolho e para arrumar lugar no quarto tive que ficar rearrumando os livros, os DVDs, o aparellho de DVD, etc. A coleção dos Pensadores, por exemplo, voltou para o armário. E os discos, que se chamavam álbuns, provavelmente por conta disso, são grandes, de uma época em que as estantes tinham espaço e que as salas tinham estantes. Os discos da minha mãe estavam escondidos em cima do armário, muito limpos, foi fácil arrumar e tocar. Os meus discos estavam na casa da minha avó e era tanta porcaria que trouxe muito poucos, afinal, ninguém passou a infância nos anos 80 impunemente. Melhor, muito melhor mesmo era pegar os disco da vó: música cubana, trilhas instrumentais de cinema, robertos e erasmos. Os discos do meu pai só consegui pegar hoje. E como eles foram salvos das traças e estavam sem capas, me deram um pouco mais de trabalho. Nada que água, sabão e flanelas não estejam dando conta. Até agora, já consegui colocar a metade para tocar, nem que seja pelo menos uma faixa.
Eu escuto e vejo como o tempo passava diferente nessa época em que se via o disco rodar e o tamanho das faixas marcadas na bolacha. A música pesava nas mãos. Você fica mais de peito aberto com a obra como um todo, a fruição era e até hoje é diferente. Eu tenho a discografia do Caetano no meu computador e perdi a conta de quantas vezes eu já escutei as minhas favoritas, até porque elas estão também no meu celular. Mas só hoje eu consegui ouvir o "Muito" inteiro, sem pular as faixas. Só hoje também, eu entendi o que meu pai sempre falou sobre o barato de "Ca-já", porque hoje eu ouvi a música pela casa e não olhando para uma tela.
É curioso pensar que esses discos da minha vó, meus, da minha mãe e do meu pai que eu juntei assim, de repente, coisa que ficou separada por anos, cada um na sua, sem o menor nexo ou familiaridade estão dividindo a mesma estante sem nenhum pudor, promiscuidade total: Jon Secada e Ravel, Daniela Mercury e Lô, Supertramp e Trem da alegria.
Mas o melhor de tudo foi ver que como num jogo da memória, os iguais foram aparecendo. Acho que meus pais depois de se separarem acabaram se recapitalizando dos discos que ficaram com o outro e eu agora tenho dois "clube da esquina", dois "álibi" da bethânia, dois "dangerous" do michael jackson, dois "gerais" e por aí vai. Assim eu vejo que eles realmente tinham algumas coisas em comum, essas identidades, que as pessoas vêem em mim, vez ou outra, e eu desconheço. Agora eu tenho em dobro esses espelhos, para ver e ouvir sempre que eu quiser.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

fazer poemas
pra quê?
pra quem?
correr em círculos
para formar o infinito
trombar com os outros
para dançar ciranda
tirar o chapéu
para cumprimentar a vida

fazer
a penas
inúteis
poemas

terça-feira, 3 de maio de 2011

Essas distantes pessoas queridas

Ontem encontrei coisas que abomino: a superficialidade, o se achar melhor do que os outros, a intolerância, o preconceito, a crença de que só o dinheiro e o consumo ostensivo podem geram prazer, o lixo da indústria cultural como único bem imaterial. Estou irritada e triste até agora porque essas coisas que abomino, encontrei em pessoas queridas, que só estavam um pouco afastadas. Este texto é como um daqueles que eu escrevia em diários de anos atrás, escrevo para entender, desabafar e esquecer.
Não sei o que está havendo com o mundo e como indivíduos assim, que eu conheço desde sempre, que eram crianças amorosas e adolescentes alegres, viraram adultos tão pouco admiráveis. Que caminhos tomamos para em 8 anos seguirmos trajetórias e escolhas tão diferentes. Chegando em casa sem resposta e sem sono abri o livro que tinha acabado de chegar pelo correio, afinal, estava arrasada e poucas coisas me dão tanto prazer quanto abrir um livro novo que há tanto tempo eu quero ler. O livro é "Diferença e repetição" de Deleuze e, assim, comecei a desfrutar da minha noite.
Logo na introdução está lá: "se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão." A repetição que sempre foi um barato meu, uma coisa que eu curtia sem saber muito com quem falar, fiquei paralisada por aquela sentença. No livro, Deleuze associa a diferença a generalidades, enquanto a repetição é singularidade.
Pensei nessas distantes pessoas queridas e em como tudo o que elas falam, prezam e desejam está muito mais no âmbito do geral que do singular. A minha bicicleta, por exemplo, representa pra mim a forma como eu quero passar pelo mundo, devagar, sentindo a brisa nos cabelos, olhando a paisagem e contando apenas com as minhas pernas. É uma opção singular, enquanto no geral, valorativamente, este meio de transporte não chega nem perto do ar condicionado do carro de vidros escuros fechados.
Poderia ficar arrumando mais algumas explicações ou exemplos, falar sobre uma certa nostalgia do transcendente que quando não é suprida pela obra de arte, acaba encontrando outros caminhos como o fanatismo religioso ou a intolerância que tenta eliminar a diferença, tudo em busca de uma pureza que já não é possível no mundo de hoje. Mas talvez seja melhor só deixar pra lá, ficar quieta, passear de bicicleta por aí recitando para mim mesma algum poema de cor. Já que "a cabeça é o órgão das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição".

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Fred

Fred era calado, gostava de ver televisão e desenhar. Um garoto esquisitão para quem tinha 8 anos, poucos amigos e poucas palavras. Fred morava com o bisavô, Agenor, numa casa no subúrbio, onde se ouvia principalmente o canto dos passarinhos da casa, em suas gaiolas e a rádio de notícia, que o Seu Agenor ouvia baixinho ao pé do ouvido. Se não fosse por esses dois sons, poderíamos dizer que era como se Fred e o bisavô vivessem em um filme mudo. Não era uma questão de não se entenderem, não, muito pelo contrário, eles eram apenas pessoas silenciosas que aprenderam a se comunicar sem palavras. Ao lado do quarto de Fred havia um piano que ele nunca ousou tocar, aliás, desde a morte de sua bisavó, Dona Elisete, o piano se tornou mais um morador silencioso daquela casa. Seu Agenor sempre dizia que o som desse instrumento espantava o canto dos passarinhos. E Fred, de maneira alguma, queria calar o som principal que habitava aquela casa.

Dona Elisete

Dona Elisete ainda era nova e orgulhosa falava para todos que já era bisavó. Ela não tinha muito com quem conversar, seus filhos moravam longe, seu neto trabalhava o dia inteiro e seu marido falava muito pouco. Este, seu Agenor, gostava de passarinhos em gaiolas e de ouvir o noticiário. Ele ficava ouvindo as notícias do radio AM que nunca desligava nem na hora de dormir. E Dona Elisete, como não tinha muito com quem conversar, adorava andar de ônibus para puxar assunto com quem sentasse ao seu lado. Que mochila pesada, quer que eu segure, olha, acho um absurdo isso, e eu já sou bisavó, sei bem que não se usa esses livros todos. Quando voltava de seus passeios, com alegria, corria para tocar seu piano, antes que Seu Agenor chegasse. Seu Agenor não gostava que ela tocasse piano, principalmente música clássica, atrapalhava seus passarinhos. Quando ele chegasse, ela se levantaria, antes que ele percebesse. Não gostava de cara feia, e Seu Agenor de cara feia, franzia o rosto de um jeito que o deixava parecido com seus passarinhos. Dona Elisete deixava pra lá, como havia deixado o sonho de ser pianista, a vontade de pintar as unhas e os lábios de vermelho e tantas outras coisas que ficaram pelo caminho. Ela se voltava para o bisneto de 6 meses que ficava no berço no quarto ao lado do piano. Esse sim, sempre tinha no rosto um sorriso para ela e gostava muito de ouvi-la tocar.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

As paredes do feriado

as paredes do feriado
se juntam a longos corredores
onde ecos compridos
vêm, às vezes dar notícias.

as paredes do feriado
são curtas e finas,
será que elas
têm ouvidos?
é mais provável que tenham
olhos ou línguas.

as paredes do feriado são
limpas e ásperas
e eu as aproveito
para pendurar meus brancos
lençóis guardados,
lavados.

terça-feira, 12 de abril de 2011

aos fracassos felizes

brindemos aos fracassos felizes
às promessas descumpridas
com gosto,
à prazerosa perda de tempo
viva o não-fazer delirante!!!
controle remoto
telefone sem fio
wireless
careless.

Dica:
preste atenção ao
giro do ventilador de teto
e ao passo de
vagar da rede,
de dormir.
Loser
é vender seu tempo
e ignorar o que há
de beleza por aí

Ipanema

um copo de mate
gelado na praia
um vento que bate
gelado na cara
amigas em roda

qual a medida certa da felina
vontade de sair por aí,
mulheres, o vento, o mate
a roda?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

crise

que sacanagem
aqui nessa cidade
todos perguntam
a minha idade
mentir ou não
omitir
eis a questão

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Susana

Susana tinha medo da morte e pensava consigo mesma, e quem não tem? É verdade, esse deve ser um medo tão comum que nem deveria contar. Mas num dia de outono começou a chover ao meio-dia. Susana pensava consigo mesma que chover ao meio-dia não era comum no Rio de Janeiro. No Rio chovia ou de manhã, ou no fim da tarde, ou à noite, ou de madrugada, pensava mais um pouco e repetia que chovia ou de manhã ou no fim da tarde, ou à noite ou de madrugada. Que estranha aquela chuva. Susana pegou seus óculos de grau e foi na janela olhar a chuva. Ao atrevessar a janela percebeu que seus óculos molharam com a chuva e que era melhor tirá-los. Pensou que a água se dá melhor no corpo da gente, nada entre nós e a chuva seria melhor, seria melhor um peito aberto para abraçar a chuva. Uma chuva ao meio-dia não causaria tantos estragos no trânsito era uma chuva complacente e merecia o seu abraço. Saiu de casa, dando duas voltas na chave, Susana sempre dava duas voltas na chave antes de sair, não sabia o porquê, simplesmente achava certo. Na rua assobiou "Singin' in the rain" porque não se atrevia a cantar, já ousava demais sem o guarda-chuva. Molhava-se, sem medo, sem medo de gripe ou outras doenças, nem parecia ela mesma, Susana, a professorinha da 4a séria do colégio Brigadeiro XXIX. Olhava para um vira-lata que também se molhava e não se preocupava com crianças e doenças e até mesmo a morte. Susana se viu momentaneamente naquele cachorro, ali assim, tão livre como ela naquela chuva. Pegar aquele cachorro e levá-lo para casa era uma maneira dela congelar para sempre aquele momento de rebeldia. A chuva parou e Susana voltou para casa. Era feriado. Ela deu duas voltas na chave para tracar novamente a porta, tirou as roupas molhadas e as jogou no tanque, o cachorro molhado ficou na área de serviço. E depois do banho, ela começou a preparar a aula para o dia seguinte.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Falsos verdes
falsas verdades
burgueses
encastelados
nos fins das tardes

dois filhos, três cachorros
renda per capta
quatro carros na garagem
whisky, jantares
todo mundo autoridade

em pleno Brasil
na sua capital
perdeu-se a noção
completa do que é
R-E-A-L-I-D-A-D-E

quarta-feira, 16 de março de 2011

Fred Astaire


Beige, champagne or ivory?
I don't care,
I live on the golden
black and white
of Broadway Melody

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Minha avó falava toda noite
"tem que passar um creminho
nos pés para dormir fresquinha".
E eu passava, claro.
A minha avó tinha os lençóis
mais cheirosos do mundo,
dormir lá era maravilhoso,
a roupa de cama
tinha cheiro de abraço,
ou de ninho,
cheiro de brincar sozinha
na varanda o dia todo
para construir universos.

As coisas que a vó Dorinha
delicadamente, aconselhava,
eram a única lei que eu conhecia.