sexta-feira, 9 de outubro de 2015

1992

A piscina de plástico montada no quintal já juntava alguns insetos, folhinhas e vestígios de poeira da rua. Era o momento de trocar a água, ou talvez desmontá-la já que a menina vinha espaçando os banhos de quintal. Ela queria dançar. Dançava o tempo todo pela casa e quando ninguém estava olhando, se sentia à vontade para cantar em voz alta. Tinha vergonha, era tímida, mas sonhava com os palcos. Tinha, na época, 9 anos e gostava de passar a maior parte do tempo na casa com a sua avó que estava sempre ocupada arrumando a casa, lavando o quintal, tirando os cocôs da cachorra. Não tinha mais medo do lobo mau de blusa listrada e suspensório que a ficava no corredor que dava para a rua. Não tinha mais os pintinhos que ganhara na troca do garrafão. Eles haviam morrido dois anos atrás, mas ainda era e ainda é forte o cheiro fedido daquelas criaturas queridas. Tinha conversas lindas e banais com a avó e aprendia muita coisa com o avô. Aprendia muito sobre futebol e sobre as televisões que ele consertava. O avô tinha uma teoria sobre uniformes reservas dos times: era para não confundir com os outros jogadores, sobretudo, quando se via a partida em televisores em preto e branco. Nunca verificou se era verdade. Ainda sente o cheiro de válvulas queimadas que o avô trocava. Ainda é claro o ruído da tv que se demorava a ligar. Aqueles cinco segundos que nos separavam de saber se o serviço estava terminado ou não.
Gostava daquela casa, como poucas coisas em sua pouca vida. As festas na garagem, brincar de comidinha. Mas naquele dia específico, a menina chorava. Chorava muito e parecia encher a piscina de plástico de lágrimas. Tinha acabado de descobrir que não iria dançar na próxima apresentação. Tinha sido cortada. A avó dizia que ela era muito menina e esse era o motivo. Não acreditou muito, mas nunca verificou essa informação também. Na infância, ela se contentava com o que os avós diziam.
A menina chorou a tarde toda, mas em alguns momentos, ela acha que ainda está lá chorando, como se esse momento nunca tivesse acabado. Como se fosse possível, imediatamente, se transportar para essa tarde em novembro de 92. Toda vez que ela vai para lá, ela vê o olhar misericordioso da avó que joga água no quintal com uma mangueira verde. A cachorrinha que olhava curiosa e de lado, quase chorando em solidariedade. Já não explica mais o seu choro, apenas sente as últimas lágrimas que descem e uma vontade imensa de parar de chorar.
Naquele dia, ouviu o barulho conhecido de um carro e a cachorra latiu. A menina sabia e sempre soube que era o som do fusca azul do avô. Correu para a casa para limpar o rosto. Ela não aguentaria a dor do avô ao vê-la sofrer. Lavou os rosto, se olhou outra vez no espelho. Já era o momento de correr até a garagem para recebê-lo. E com um sorriso esforçado ela fez a mesma pergunta que fazia todo fim de tarde quando o avô voltava: "trouxe hoje?". E o avô lhe entregou feliz um saquinho de papel com balas e doces. Era um código, um momento de cumplicidade que os dois partilhavam e performavam todos os dias. A menina, então, sorriu de verdade. E entrou para a casa para ligar a televisão de onde sairam vozes que se demoraram a virar imagens em preto e branco.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Rio seco

Se um rio claro que sofre de seca
pedisse passagem para me atravessar
eu falaria "com licença"
acho que seria um pouco rio um pouco calor
um tanto mulher
ancestral
como todos os acidentes que nos atravessam
como saudades esquecidas
e bilhetes de amor perdidos

quantos rios secos não nos tentam atravessar
todos os dias
quantas cascatas celestes
inventam de subir de nós

Não quero almoçar,
estou sem fome
não é nada não
satisfeita, só isso
engoli um rio
que não existe

sexta-feira, 13 de março de 2015

Na casa nova
Antigos cheiros
São descobertos

O sofá tinha um
Cheiro irresistível
De bicicleta nova

Deu vontade de passear

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A arquitetura dos sonhos

Costumo me interessar pela arquitetura dos lugares com os quais sonho. Normalmente, eu junto duas ou mais casas que conheci, cada qual com pelo menos um cômodo ou um morador e misturo numa arquitetura nova. Algo que já tinha reparado antes é que essa construção onírica é possível através do cinema:filmar lugares distintos e colocá-los em continuidade. Essa noite sonhei com a casa antiga da minha avó, acho que mais precisamente, num período da casa, em que estava em obra para a construção de outra casa em cima. Eu tinha nove anos e o que me lembro bastante são os pelotis de madeira. Tinha um no meio da sala e eu achava aquilo bem divertido. (Certamente, queria subir como se fosse brincadeira de criança, mas nunca desobedeci meus avós). No sonho dessa noite tinham uns pelotis na garagem, mas era para o meu padrinho colocar cerca de 5 carros, com manobras loucas numa garagem em que só cabem no máximo da ocupação, 2. Lembro de estar na rua também, mas não era a rua hoje envelhecida, empobrecida, era aquela rua vívida da minha infância no início dos anos 90, com crianças brincando e vizinhas fofoqueiras. Entrei na casa para contar algo para minha mãe e minha avó e não consegui de jeito nenhum terminar de contar, pois me interrompiam sem cessar. Fui para a sala e já era um misto da sala da minha mãe, com a minha sala, com a outra casa que moramos na minha infância. Tinha uma cozinha que dava para a sala (com tapete, poltrona, mesa, bem cheia) e na cozinha tinha um cachorro. Um poodle preto, que na verdade não era poodle e quando me dei conta, a cachorra era na verdade bem grande. Quis imediatamente levá-la para passear, mas Camila estava lá em casa para conversar. Parecia ser a casa da minha mãe que tinha viajado. Não sei como, fui parar numa varanda com a qual sempre sonho. Tive poucos sonhos recorrentes na minha vida, e esse lugar vive voltando ao longo dos anos. È uma varanda grande, bem grande com um jardim enorme. Já sonhei que era paradisíco, com piscinas, chafarizes que iam caindo em sequência, mas na maior parte do tempo são só plantas mesmo, uma espreguiçadeira, e o balcão de onde posso olhar a rua. Algumas plantas caem do teto que fica em cima da cadeira. A outra parte, fica no sol. Mas nunca é muito sol nos sonhos: ou noite, ou fim de tarde, ou manhã bem cedo. Nunca senti desconforto nesse jardim de sonhos. O mais curioso é que esse jardim é sempre na minha casa. Moro lá, mas toda vez que olho sempre me surpreendo com a beleza e o tamanho do lugar. Algumas vezes sonho que é aqui em Santa Rosa, ou na rua que moro, ou na rua detrás (que não existe). às vezes parece um cenário de filme clássico sobre a antiguidade. Babilônia. Talvez, Egito. Mas às vezes parece um jardim que imagino ao ler romances românticos. Mas sempre sonho com ele na atualidade. O curioso é que sonho com esse lugar e sempre acordo.
Já pensei que se, com muita frequencia, misturo lugares que conheci no passado numa mesma casa, talvez eu conheça essa lugar. E não de imaginar só. De ter tido um jardim assim por onde já passei, vivi, amei em outros tempos.
De alguma forma essas arquiteturas loucas dizem muito sobre mim, minha vontade de juntar pessoas, lembranças, lugares e histórias novas. Esses lugares de sonho que visito à noite, ajudam a desconstruir uma saudade das coisas que vivi. Uma saudade boa de ter, e que se fosse ruim, poderia ser o único pesadelo que teria.