terça-feira, 26 de março de 2013

o vô

meu vô sempre foi o cara. ontem cheguei no hospital para visitá-lo e ele tava falando com a enfermeira "esse cara sou eu". Enrolando a língua e fazendo graça. Meu avô parece um galã da época de ouro. Um Marlon Brando, um Tarcísio Meira. Sempre fui sua fã, sempre amei suas histórias e sua forma de ver a vida. No último natal, dei a ele um caderno para que anotasse suas belas palavras. E ele fez isso esse ano. Faz um mês ele foi parar no hospital e teve um diagnóstico que nos assustou. Não sabemos ainda como vai ser, mas temos a certeza de que temos muito amor para dar, muito carinho para ensiná-lo a viver uma nova vida. Hoje ele volta para casa. Em seu último dia de hospital eu e o Taiyo passamos a manhã com ele. Aprendemos muito, foi um belo dia, como os outros dias que passei com o vô. Vô gosta de falar quantos passarinhos estão cantando lá fora, ou quantos tons de verde vemos nas árvores. Ontem, segurando a minha mão, ele fez um poema. O Taiyo anotou e eu transcrevo aqui embaixo. Seja muito bem-vindo de volta, Seu Amaral.

Poema do vô
25/03/2013

Eu já vi muita coisa
Eu conheço todas essas pedras
Eu conheço todos os caminhos
Eu já vi muita gente nascer
Eu já vi muita gente morrer

Muita coisa boa
Muita coisa ruim
Só não vi o homem
Tomar conta da sua cria
Tomar conta da sua cria
O jacaré eu já vi
a onça.
Sempre a cria do homem foi largada
As crianças abandonadas pela rua

O homem não liga muito para sua cria

Vi o sol nascer muitas vezes
Por trás das montanhas

Vi nascer a água por trás das montanhas

Jogando os raios de luz pelo mar

Às vezes eu sozinho, mas sentia prazer
Tem gente que não sente prazer

Eu gosto muito de música
O homem que não gosta de música
Não merece viver
Tem que ter música no sangue

Eu estou com sono

Bonito, o que estou vendo

A minha vontade não é ir pra casa
É ir na rua
ver o sol
ver o céu
ver a natureza

eu quero que a chuva me beije
que caia no meu rosto
porque a chuva tem gosto de mulher

quinta-feira, 7 de março de 2013

Carteira

perdi minha carteira ontem. ela escapuliu da minha bolsa enquanto andava de bicicleta. Descobri na hora de sair de casa, cancelei cartões, mudei os planos, e não pude dirigir. fiquei um dia inteiro pensando que a minha carteira seria encontrada e devolvida. E foi. Entregaram na academia com tudo lá direitinho do jeito que eu deixei. Ao resgatá-la, que me dei conta dos tantos rastros que deixei lá: o que carrego na minha carteira diz muito sobre mim. Carteira de estudante, minha e do meu namorado, canhotos de compras banais, um dólar que ganhei em 86 e guardo até hoje para dar sorte, uma ficha de videokê, igualmente para dar sorte, um band-aid, cartões de visita, 19 reais trocados, 2 cetimos de euro, uma outra moeda que não reconheço, bilhete único e a carteira da academia que me rastreou. Sou séries de números, sou fotos 3 por 4, sou cartões de plastico, sou moedas estranhas, e um curativo amarrotado. Sou também o que não está na carteira: a foto do cachorro que ainda vou ter, a chave do portão imaginário, cartas de baralho, assinaturas que não existem, e óculos para miopia que cabem no porta-moeda. Somos sempre a poesia do entra e do que não entra nas nossas seleções. Somos níquel, números, folhas, fotos, lixo e buracos. E sempre podemos perder e reencontrar o que carregamos.