quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Vozinha

Hoje é um dia de dor. É claro que eu sabia que esse dia viria, uma vozinha tão velhinha eu sempre soube que um dia iria se despedir. Bom, aconteceu, ela se foi e me deixou um monte de perguntas que eu nunca terei resposta. Acho que a morte é exatamente este vazio sem respostas.
Eu acho que nunca perguntei para ela como é que é viver tanto. Nunca fiz essa pergunta, e tenho certeza que ela teria me dado uma bela resposta, cheia de poesia e realidade, como ela sempre foi. Foi com toda esta poesia e realidade que me inspirei nela para escrever algumas histórias, uma espécie de realismo fantástico do subúrbio do Rio. A história da Ave-Maria é baseada nela, uma outra história sobre um cacto que escrevi e um dia publicarei também é sobre ela.Ela era a minha principal fonte de informação sobre de onde veio a minha família, foi ela que me contou sobre uma fuga romântica a cavalo de nossos antepassados que queriam se casar apesar da oposição da família. Sempre achei essa imagem linda e adorava pensar que a minha família se formou assim num amor aventureiro que sempre teve tudo para dar certo.
Nos últimos anos eu conversava pouco com ela, confesso. Não sei se ela que falava menos ou eu que parava menos para ouvi-la. Sei que há tempos ela não se lembrava mais desta história de uma fuga romântica a cavalo, e também algumas vezes em que ia visitá-la, ela não me reconhecia. A vida tem desses subterfúgios para nos preparar para quando ela vai se despedindo. A gente acaba se acostumando com a idéia de desaparecer antes que isso aconteça, e nisso, me refiro ao fato de eu desaparecer para ela, nunca o contrário, ela nunca sairá de mim.
Nunca vou esquecer os ursinhos de mãos dadas que ela fazia para me divertir quando eu era criança, uma criança que nunca soube desenhar e sempre se impressionava com isso. Nunca vou esquecer as suas lições de sabedoria, mas é uma pena que entendi tarde demais que “fogo com pólvora explode”, ou eu teria uma adolescência menos explosiva. Eu queria realmente ter aprendido em suas aulas de crochê, mas enfim, quantas coisas deixamos de fazer com aqueles que partem?
Não é só o que deixamos de fazer, mas perder a minha bisavó pra mim é perder um pouco de fé na vida. Secretamente, eu tenho certeza que acreditava que a gente poderia durar para sempre, como ela parecia ser capaz de fazer, a despeito de toda sua fragilidade aparente. Às vezes ela ficava doente e não saía da cama, eu chorava sem parar até que ela se recuperava e tudo ficava lindo, como num bom filme de sessão da tarde que eu adoro. É triste porque além de ter perdido a minha vozinha, parece que eu caí da Terra do Nunca.
Ela sempre foi o documentário que eu nunca fiz e que nunca mais poderei fazer, da maneira como gostaria, mostrando e exibindo a minha avó para todo mundo ver a gracinha que ela era: Ela mostrava um universo que andava no passo de uma cadeira de balanço, ela representava todo um estilo de vida alternativo e low profile que eu sempre admirei e que o mundo agora parece entender o quanto ela estava certa e caminha para copiá-la, numa manobra contra consumismo e catástrofes ecológicas reinantes.
Na verdade, eu nunca consegui filmá-la. Tentei algumas vezes, mas ela ficava muito preocupada com a aparência, em sua cadeira de balanço, sempre falava “oi, oi, oi” e ficava ajeitando o cabelo – que era igual ao seu quando eu era nova, ela falava – e eu não queria mais aborrecê-la com a câmera. Desligava. Quem sabe um dia eu não volto a ligar a câmera e faço o filme assim mesmo, com tudo o que restou em mim? Talvez a morte não seja um vazio de respostas, mas uma chuva, como essa que caiu hoje à noite, forte e incontrolável; a morte deve ser uma chuva de perguntas que nos mostra outras direções e nos ajuda a seguir em frente.

3 comentários:

  1. Lindo e sensível como você! A perda, sobretudo de pessoas que amamos, nunca será algo compreensível ou que saibamos lidar de fato. Ficamos então com uma opção mágica de encarar este rito de passagem como os dos westerns, talvez. Uma saga finalizada, um processo de transição para um plano superior e tranquilo para um descanso mais que merecido para uma pessoa com tanta história e ramos de amor e afeto que origina.

    Você é linda e duvido que sua família seja diferente. Continue escrevendo assim: com ALMA!

    Beijos do seu sempre amigo,
    Fábio

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Minha filha, que texto lindo!
    Se a morte realmente é "uma chuva de perguntas", tenho vivido este ano ensopado de porquês.
    Só mesmo o calor das lembranças para nos secar.
    Te amo!

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